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Prestação de contas ou “faz de conta”: uma análise crítica da sistemática de contas não prestadas por órgãos partidários municipais à luz da novel Resolução TSE n. 23.432/2014

Por: Eduardo Henrique Lolli

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objeto, essencialmente, fazer uma análise crítica do procedimento e da sanção trazidos, respectivamente, pelos arts. 30 e 47, § 2º, ambos da Resolução TSE n. 23.432/2014, notadamente à luz da realidade dos Órgãos Partidários Municipais e do ordenamento jurídico vigente.

A relevância do tema, percebe-se desde logo, justifica-se por uma série de fatores, notadamente em razão da atualidade das inovações nessa matéria; da ausência ou diminuta quantidade de publicações doutrinárias ou mesmo de decisões judiciais a respeito dessa temática e, sobretudo, por se tratar de questão prática atualmente vivenciada em praticamente todos os fóruns eleitorais e tribunais eleitorais do país, notadamente em razão do descompasso entre o texto da nova resolução e a realidade da esmagadora maioria dos Órgãos Partidários Municipais.

O primeiro capítulo aborda a importância dos partidos políticos na Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988), o dever constitucionalmente imposto aos partidos políticos de prestarem contas à Justiça Eleitoral (CRFB/1988, art. 17, III), e, por fim, a disciplina da Lei n. 9.096/1995 no tocante à prestação de contas, notadamente em relação a sua finalidade, ao prazo de sua apresentação e ao regime legal de sanções para o caso de contas não prestadas ou desaprovadas.

No segundo capítulo, discorre-se sobre a sistemática adotada pela Justiça Eleitoral em relação aos órgãos partidários que não prestaram suas contas no prazo legal. Assim, inicia-se a abordagem a partir da Resolução TSE n. 21.841/2004, para compreender as principais diferenças entre o procedimento delineado por esse normativo e aquele trazido pela Resolução TSE n. 23.432/2014, atualmente em vigor. Apontam-se, também, inúmeras críticas a esse novel iter procedimental, por violação à competência legislativa privativa da União e a diversos princípios constitucionais e da administração pública.

No terceiro e último capítulo, expõe-se o sentido e o alcance do art. 47, § 2º, da Resolução TSE n. 23.432/2014, que impõe uma nova penalidade aos órgãos partidários de nível regional, municipal e zonal. Disserta-se, ainda, sobre a inconstitucionalidade do dispositivo, a sua inaplicabilidade às prestações de contas anteriores ao exercício de 2015 e, por fim, acerca de sua (in)efetividade à grande maioria dos Órgãos Partidários Municipais.

Foram levantadas as seguintes hipóteses a partir do estudo realizado: a) a antiga sistemática de contas não prestadas, prevista na Resolução TSE n. 21.841/2004, cumpria devidamente seu papel regulamentar, sem invadir o campo da reserva legal; b) o novo procedimento previsto no art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014 afigura-se inconstitucional, por ofender a competência legislativa privativa da União, por meio do Congresso Nacional, por exorbitar, o TSE, de seu poder regulamentar, e por atentar contra diversos princípios constitucionais e da administração pública; e c) a previsão do art. 47, § 2º, da Resolução TSE n. 23.432/2014 afigura-se, num primeiro momento, inconstitucional; num segundo momento, inaplicável aos processos referentes a exercícios anteriores ao de 2015; e, por fim, ao menos em relação à esmagadora maioria dos Órgãos Partidários Municipais, sem qualquer efetividade prática.

Quanto à Metodologia empregada, na Fase de Investigação foi utilizado o Método Indutivo; na Fase de Tratamento de Dados, o Método Cartesiano; e o Relatório dos Resultados é composto na base lógica Indutiva. Para tanto, utilizou-se de pesquisa e consulta à doutrina e à jurisprudência nacionais e ao exame da legislação e das Resoluções TSE ns. 21.841/2004 e 23.432/2014.

1 PRESTAÇÃO DE CONTAS: DA PREVISÃO CONSTITUCIONAL À PRAXE DOS ÓRGÃOS PARTIDÁRIOS MUNICIPAIS

Os partidos políticos surgem com especial relevo na Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988), que, em seu art. 17, outorgou-lhes autonomia para definir sua estrutura interna e outros aspectos, além de contarem com diversas garantias, como o acesso aos recursos do fundo partidário e ao rádio e televisão, tudo no intuito de lhes dotar dos mecanismos necessários à consecução de suas relevantes finalidades institucionais.

Essa locução constitucional também ressoa intensamente no art. 1º da Lei n. 9.096/1995 – que dispõe sobre partidos políticos – ao prever que “O partido político, pessoa jurídica de direito privado, destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”.

Nas palavras de Fávila Ribeiro1:

Os partidos têm decisivo e imprescindível papel nas organizações políticas contemporâneas, na difusão de idéias que alimentam o debate político e cumprem sempre a arregimentação coletiva, seja para plebiscitos, referendo ou eleição, para os quais funciona como elemento constante o sufrágio popular.

Contudo, “a despeito da autonomia que lhe é reconhecida, deve o partido prestar contas à Justiça Eleitoral de todos os recursos que receber (CF, art. 17, III)” 2. Em outras palavras, a mesma Constituição Federal que outorgou diversas prerrogativas aos partidos políticos impôs-lhes a Prestação de Contas à Justiça Eleitoral como um dos preceitos a serem por eles observados.

Não disse o texto constitucional, entretanto, como se daria essa Prestação de Contas; o constituinte originário apenas se limitou a criar um dever, a ser regulamentado pelos órgãos competentes. Também a doutrina pátria revela-se deveras escassa nessa matéria, de modo a assumir especial relevância as resoluções editadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pelas decisões das Cortes Eleitorais.

A Lei n. 9.096/1995, por sua vez, preceitua que todas as esferas partidárias devem manter escrituração contábil, “de forma a permitir o conhecimento da origem de suas receitas e a destinação de suas despesas” (art. 30), e que “o partido está obrigado a enviar, anualmente, à Justiça Eleitoral, o balanço contábil do exercício findo, até o dia 30 de abril do ano seguinte” (art. 32, caput). Posteriormente, a Lei n. 12.034/2009 conferiu caráter jurisdicional ao exame dos processos de Prestação de Contas (Lei n. 9.096/1995, art. 37, § 6º).

Nas palavras de Lauro Barreto3, autor clássico na matéria de Direito Partidário brasileiro:

A manutenção, pelos órgãos nacionais, regionais e municipais dos partidos políticos, de uma escrituração contábil capaz de possibilitar o conhecimento da origem de suas receitas e a destinação de suas despesas é uma condição indispensável ao cumprimento da obrigatoriedade de prestação de contas à Justiça Eleitoral, imposta a todos os partidos pos dispositivo constitucional (art. 17, III, da Constituição Federal [...]).
Tal escrituração contábil ganha uma importância das mais relevantes, se levarmos em conta que a prestação de contas dos partidos políticos, a ser efetuada com base nesta escrituração, é uma exigência constitucional cujo descumprimento, conforme já foi visto, pode resultar até mesmo no cancelamento punitivo do registro partidário, além de outras penalidades [...].
O prazo para a entrega das prestações de contas anuais se estende até o dia 30 de abril do ano seguinte, sendo que os órgãos de direção nacional prestam contas junto ao Tribunal Superior Eleitoral, os órgãos estaduais junto aos respectivos Tribunais Regionais e os órgãos municipais perante os Juízos Eleitorais.

Às esferas partidárias que não prestarem contas ou que, embora as tendo apresentado, forem desaprovadas, no todo ou em parte, a lei prevê como principal sanção a suspensão de novas cotas do Fundo Partidário (Lei n. 9.096/1995, art. 37, caput), previsto e disciplinado no art. 41-A da Lei n. 9.096/1995; fundo esse, ressalte-se, que representa, de longa data, a maior fonte de recursos dos partidos políticos, e, por isso, é o fator que mais os impulsiona a apresentar suas contas à Justiça Eleitoral e a zelar para que elas sejam regularmente aprovadas.

Contudo, ainda que haja desrespeito às normas legais relativas ao dever de escrituração contábil ou ao prazo para Prestação de Contas, a sanção acima explicitada: a) “será aplicada exclusivamente à esfera partidária responsável pela irregularidade” (Lei n. 9.096/1995, art. 37, § 2º), de modo que um diretório nacional, por exemplo, não pode responder por inadimplência de um órgão municipal da mesma sigla quanto à ausência ou deficiências na Prestação de Contas deste; b) “deverá ser aplicada de forma proporcional e razoável, pelo período de 1 (um) mês a 12 (doze) meses, ou por meio do desconto, do valor a ser repassado, da importância apontada como irregular, não podendo ser aplicada a sanção de suspensão, caso a prestação de contas não seja julgada, pelo juízo ou tribunal competente, após 5 (cinco) anos de sua apresentação” (Lei n. 9.096/1995, art. 37, § 3º). Conforme bem sintetiza Edson de Resende Castro, “a não apresentação das contas ou sua rejeição parcial ou total acarreta para a unidade partidária correspondente a suspensão das cotas do Fundo Partidário, pelo período de um a doze meses, proporcionalmente à gravidade dos fatos (art. 37)”.

Além disso, a Lei n. 12.034/2009 passou a prever ainda, a partir de dispositivos inseridos na Lei n. 9.096/1995, a possibilidade de: a) interposição de recurso com efeito suspensivo contra a decisão que desaprovar, no todo ou em parte, a Prestação de Contas dos órgãos partidários (art. 37, § 4º); e b) revisão da sanção de desaprovação, “para fins de aplicação proporcional da sanção aplicada, mediante requerimento ofertado nos autos da prestação de contas” (art. 37, § 5º).

Ao discorrer sobre regime de sanções relativo à ausência ou à desaprovação de contas partidárias, sintetiza Ana Claudia Santano4:

A fiscalização não seria efetiva se não houvesse um regime de sanções em caso de inobservância de normas. Elas afetam principalmente os recursos concedidos através do fundo partidário, variando desde a retenção temporal do envio dos recursos (para casos de valores não indicados nos balanços ou sem origem específica), até a sua suspensão de um a dois anos (em caso de recebimento de doações das fontes arroladas no art. 31, ou que excedam os limites arbitrados no art. 39. Já no caso da ausência de prestação de contas, além de serem suspensas as subvenções do fundo partidário, também são submetidos ao regime penal. Todas as sanções devem ser aplicadas de maneira “proporcional e razoável”, havendo prazo de prescrição de cinco anos a partir da entrega da documentação para sua aplicação. Ademais, não é possível suspender o envio de recursos em caso de que não haja a verificação das contas no prazo disposto em lei. Tanto o exame da prestação de contas como a aplicação de sanções tem caráter jurisdicional, cabendo recursos para os tribunais superiores.

Oportuno registrar, de outro lado, que em relação aos órgãos partidários nacionais aplica-se uma sanção bem mais severa, qual seja, o cancelamento do registro civil e do estatuto partidário, quando não tiverem “prestado, nos termos desta Lei, as devidas contas à Justiça Eleitoral”; sanção essa, porém, aplicável exclusivamente “aos órgãos nacionais dos partidos políticos que deixarem de prestar contas ao Tribunal Superior Eleitoral”, conforme art. 28, III c/c § 6º, da Lei n. 9.096/1995.

De acordo, ainda, com a literalidade legal, esse cancelamento apenas se revela cabível em caso de ausência de apresentação das contas partidárias, afastada a penalidade, portanto, na hipótese da respectiva desaprovação.

Não se olvida que também existe a previsão legal genérica de que a falta ou desaprovação das contas partidárias “sujeita os responsáveis às penas da lei” (Lei n. 9.096/1995, art. 37, caput, in fine), porém trata-se de dispositivo demasiado vago e genérico que, na prática, inviabiliza um enquadramento específico do infrator para fins de concreta responsabilização, quer no âmbito civil, penal ou administrativo, ressalvadas raríssimas exceções5.

De um lado tem-se, sob o ângulo constitucional, o dever de Prestação de Contas por todos os partidos, o que, implicitamente, se estende a todas as esferas partidárias (nacional, estadual, distrital, regional, zonal e municipal). De outro, para concretizar esse mister constitucional, verifica-se, agora a partir da disciplina legislativa de regência, que o partido deve apresentar suas contas anualmente à Justiça Eleitoral (até 30 de abril) e, em caso de inadimplência, terá como principal – senão única – sanção a vedação ao recebimento de recursos do fundo partidário; e, ainda assim, limitada à esfera partidária responsável e de forma “proporcional e razoável”, e ainda com possibilidade de recurso com efeito suspensivo ou de revisão da decisão mediante simples petição nos autos.

Na prática, tem funcionado assim:

a) os órgãos partidários nacionais prestam contas, sob pena de terem cancelado o respectivo registro civil e o correspondente estatuto partidário, e, após apresentadas, dispõem de todo um arcabouço legislativo propício para apresentar recursos e pedidos de revisão e, ao final, quando muito, têm suspenso o repasse daquele fundo de forma “proporcional e razoável”;

b) os órgãos distritais e estaduais, e os poucos órgãos municipais que recebem recursos do Fundo Partidário, prestam suas contas à Justiça Eleitoral para continuar desfrutando das verbas desse fundo, e, na pior das hipóteses, também têm suspenso o repasse daquele fundo de forma “proporcional e razoável”;

c) a grande maioria dos Órgãos Partidários Municipais, os quais não recebem absolutamente nada daquele fundo, não prestam contas ou as prestam inteiramente zeradas ou de qualquer forma que não permite qualquer exame sério, e recebem por isso apenas uma sanção que até então não os tem intimidado, qual seja, deixar de receber aquilo que nunca receberam e que tão cedo não receberão (Fundo Partidário).

Segundo a Lei n. 9.096/1995, “a previsão orçamentária de recursos para o Fundo Partidário deve ser consignada, no Anexo do Poder Judiciário, ao Tribunal Superior Eleitoral” (art. 40, caput), os quais são depositados pelo tesouro nacional em duodécimos no Banco do Brasil àquela Corte (art. 40, § 1º), que, dentro de 5 (cinco) dias a contar desse depósito, fará a respectiva distribuição aos órgãos nacionais dos partidos, consoante os critérios definidos no art. 41 da mesma lei.

Assim, no sistema vigente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) faz a distribuição de referidos recursos apenas aos órgãos partidários nacionais que, quando muito, fazem algum ou outro repasse aos respectivos órgãos estaduais, e estes, por sua vez, dificilmente repassam qualquer valor aos órgãos municipais. Ressalte-se que não há nenhuma previsão legal quanto à necessidade de repasses, muito menos de valores mínimos, entre as diferentes esferas partidárias, até porque essa questão encontra-se inserida nos limites da autonomia assegurada constitucionalmente a cada agremiação partidária. É assim, portanto, que o sistema funciona na prática.

O fato é que, de importante previsão constitucional, a Prestação de Contas à Justiça Eleitoral tornou-se, ao menos em relação à grande maioria dos órgãos municipais, um verdadeiro “faz-de-conta”, visto que os partidos não se importam minimamente em prestar contas ou, quando as prestam, fazem-no de qualquer jeito, por meio de balanços e demonstrativos completamente zerados; e a Justiça Eleitoral, aprovando-as ou não, já não faz muita diferença. Infelizmente, é nesse contexto que se deve compreender as linhas que seguem.

2 CONTAS NÃO PRESTADAS: DA RESOLUÇÃO TSE N. 21.841/2004 À RESOLUÇÃO TSE N. 23.432/2014

Após discorrer sobre a previsão constitucional e a disciplina legislativa acerca da matéria, convém descer a minúcias constantes dos atos infralegais expedidos pelo TSE sobre a Prestação de Contas partidárias, bem como discutir o alinhamento das disposições regulamentares aos textos constitucional e legal.

2.1 Resolução TSE n. 21.841/2004


O processo de Prestação de Contas partidárias era regido pela Resolução TSE n. 21.841/2004, que disciplinava “a prestação de contas dos partidos políticos e a Tomada de Contas Especial”.

Especificamente no tocante à omissão dos órgãos partidários em apresentar suas contas no prazo legal, dispunha o art. 18 daquela resolução:

Art. 18. A falta de apresentação da prestação de contas anual implica a suspensão automática do Fundo Partidário do respectivo órgão partidário, independente de provocação e de decisão, e sujeita os responsáveis às penas da lei (Lei n. 9.096/95, art. 37).
Parágrafo único. A unidade responsável pela análise da prestação de contas deve verificar quais partidos políticos não a apresentaram e informar o fato ao diretor-geral dos tribunais eleitorais ou ao chefe dos cartórios eleitorais, que devem proceder como previsto no art. 37 da Lei n. 9.096/95, comunicando às agremiações partidárias a suspensão, enquanto permanecer a inadimplência, do repasse das cotas do Fundo Partidário a que teriam direito. (grifou-se)

A partir da interpretação desse normativo regulamentar, inferia-se claramente uma relação de causa e efeito, qual seja: ausência de Prestação de Contas = suspensão automática do Fundo Partidário ao órgão partidário omisso. Simples assim, como de fato deve ser, visto que a Prestação de Contas se trata de obrigação ex lege (decorre diretamente da lei), cujo inadimplemento se afina com a ideia de mora ex re (desnecessária a interpelação judicial prévia).

Referido dispositivo incorporava implicitamente, mutatis mutandis, o entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico em matéria de obrigações civis, no sentido de que “a mora ex re independe de interpelação, porquanto decorre do próprio inadimplemento de obrigação positiva e líquida” 6, haja vista que o prazo para apresentação das contas partidárias também já vem previsto expressamente em lei, mais precisamente no art. 32, caput, da Lei n. 9.096/1995 (até 30 de abril do ano seguinte ao exercício financeiro a que se refere).

Em se tratando de órgãos municipais, a praxe era, a partir desse entendimento, informar ao Juiz Eleitoral, após o decurso do prazo legal, quais partidos não prestaram contas, o qual determinava imediatamente a suspensão do repasse de novas cotas do Fundo Partidário aos órgãos omissos, até quando permanecesse a inadimplência, com posterior comunicação às esferas partidárias federais, estaduais e municipais.

De acordo com o texto do parágrafo único do art. 18, aliás, nem seria necessária a comunicação à autoridade judiciária, visto que esse dispositivo atribuía competência direta aos chefes de cartório ou Diretores-Gerais das Cortes Eleitorais, considerado o manifesto inadimplemento do prazo legalmente estipulado, embora a praxe recomendasse a submissão da matéria àquela autoridade.

Percebe-se, portanto, que a tônica da Resolução TSE n. 21.841/2004, afinada aos comandos legais de regência, era a de esperar a iniciativa dos partidos políticos em cumprir a obrigação que a lei lhes impõe, sob pena de automática suspensão do recebimento de novas cotas do Fundo Partidário até que fosse regularizada a situação, como de fato deve ser, a evidenciar que referido ato normativo cumpria devidamente seu papel regulamentar, por espelhar fielmente a mens legis do art. 32, caput, da Lei n. 9.096/1995.

2.2 Resolução TSE n. 23.432/2014

Após compreender a sistemática da Resolução TSE n. 21.841/2004 no tocante às contas não prestadas no prazo legal, cumpre asseverar que a essa disciplina regulamentar sofreu profundas alterações por força da Resolução TSE n. 23.432/2014, notadamente no que se refere ao procedimento a ser adotado pelos cartórios eleitorais e secretarias dos Tribunais Eleitorais.

No tocante a esse novel procedimento, o art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014 passou a dispor:

Art. 30. Encerrado o prazo para a apresentação das contas, a Secretaria Judiciária do Tribunal Eleitoral ou o Cartório Eleitoral:
I – notificará os órgãos partidários e seus responsáveis que deixaram de apresentá-las para que supram a omissão no prazo de setenta e duas horas;
II – findo o prazo previsto no inciso I deste artigo, a Secretaria Judiciária ou o Cartório Eleitoral comunicará ao Presidente do Tribunal ou ao Juiz Eleitoral que o órgão partidário não prestou contas tempestivamente;
III – o presidente do Tribunal ou juiz determinará a autuação da informação, na classe processual de Prestação de Contas em nome do órgão partidário e de seus responsáveis e, nos tribunais, o seu encaminhamento para distribuição automática e aleatória;
IV – recebidos os autos da prestação de contas, a autoridade judiciária verificará a regularidade das notificações procedidas e determinará a citação do órgão partidário e de seus responsáveis para que apresentem suas justificativas no prazo de cinco dias;
V – na hipótese de o órgão partidário ou de seus responsáveis apresentarem as contas partidárias no prazo previsto no inciso IV deste artigo, o processo seguirá o rito previsto nos arts. 31 e seguintes desta Resolução e a extemporaneidade da apresentação das contas, assim como as justificativas apresentadas, serão avaliadas no momento do julgamento;
VI – persistindo a não apresentação das contas, apresentadas ou não as justificativas de que trata o inciso IV deste artigo, a autoridade judiciária:
a) enviará os autos à Unidade Técnica para que:
1. sejam juntados os extratos bancários que tenham sido enviados para a Justiça Eleitoral, na forma do § 2º do art. 6º desta Resolução;
2. sejam colhidas e certificadas nos autos as informações obtidas nos outros órgãos da Justiça Eleitoral sobre a eventual emissão de recibos de doação e registros de repasse ou distribuição de recursos do Fundo Partidário;
b) ouvirá o Ministério Público Eleitoral após as informações de que trata a alínea a deste inciso;
c) adotará as providências que forem necessárias; e
d) mantida a omissão, submeterá o feito a julgamento, deliberando sobre as sanções cabíveis ao órgão partidário e seus responsáveis.

Uma simples leitura desse art. 30 já revela, à toda evidência, que o procedimento, até então simples, tornou-se extremamente burocrático e complexo, por inverter a lógica da Resolução TSE n. 21.841/2004, visto que o novo texto trouxe para a Justiça Eleitoral o ônus de primeiramente “correr atrás” dos órgãos partidários omissos – como se fosse “babá de partido”, na expressão jocosamente cunhada por alguns colegas – para que cumpram uma obrigação ex lege e com prazo certo já previsto em lei.

Em síntese, segundo esse novo procedimento, deve-se, na seguinte ordem: a) efetuar uma notificação ao órgão inadimplente, para que preste as contas em 72 (setenta e duas) horas; b) informar à autoridade judiciária eleitoral competente, que determinará a autuação da informação em nome do órgão partidário e de seus responsáveis; c) autuada a informação, faz-se nova conclusão à autoridade judiciária eleitoral para apreciar, agora, a validade das notificações expedidas e, em caso positivo, segue a determinação para citação (do órgão partidário e dos responsáveis), para apresentar suas justificativas no prazo de 5 (cinco) dias, prazo durante o qual ainda podem ser apresentadas as contas partidárias.

Findo todo esse iter procedimental, a unidade técnica colherá as informações e documentos; será ouvido o Ministério Público Eleitoral; e, por fim, os autos seguirão conclusos à autoridade judiciária para determinar as providências necessárias; e, finalmente, “mantida a omissão, submeterá o feito a julgamento, deliberando sobre as sanções cabíveis [...]” (art. 30, VI, “d”).

Tudo isso para se chegar ao final e dizer, por sentença, que as contas não foram prestadas, isto é, para se prolatar uma sentença declaratória negativa; ou, na melhor das hipóteses, para receber uma Prestação de Contas que os órgãos partidários já deveriam ter apresentado independentemente de qualquer provocação.

Verifica-se, por conseguinte, franco descompasso entre a novel resolução e todo o arcabouço jurídico existente sobre a matéria, conforme se demonstra com mais propriedade no tópico a seguir.

2.3 Críticas ao procedimento do art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014

Entende-se que a abrupta mudança regulamentar incidiu em manifesta inconstitucionalidade, formal e material, na medida em que o TSE avançou em matéria reservada ao domínio legislativo do Congresso Nacional, de um lado, e, de outro, exorbitou de seu poder regulamentar.

Ao tratar do poder regulamentar em face do princípio da legalidade, assevera José Afonso da Silva7:

O princípio é o de que o poder regulamentar consiste num poder administrativo no exercício de função normativa subordinada, qualquer que seja seu objeto. Significa dizer que se trata de poder limitado. Não é poder legislativo; não pode, pois, criar normatividade que inove a ordem jurídica. Seus limites naturais situam-se no âmbito da competência executiva e administrativa, onde se insere. Ultrapassar esses limites importa em abuso de poder, em usurpação de competência, tornando-se írrito o regulamento dele proveniente.

Ao tratar do poder normativo da Justiça Eleitoral, pertinentes se mostram as palavras de Carlos Eduardo de Oliveira Lula8, as quais, embora proferidas em outro contexto, também se aplicam, na essência, à discussão ora travada:

Obviamente, tal poder normativo só pode ser exercido secundum legem, jamais contra legem, uma vez que os juízes não podem substituir o legislador, encontrando-se subordinados à lei e à Constituição. Todavia, o poder de expedir resoluções, em regra é superestimado pelo TSE, o que torna a legislação ainda mais casuística. O art. 105 da Lei n. 9.504/1997 permite que as resoluções sejam expedidas até o dia 5 de março do ano da eleição, com a presunção, que infelizmente não se confirmou, de que elas não afrontariam as previsões legislativas.

É nesse contexto que se deve compreender o art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014, que, salvo melhor juízo, revela-se inconstitucional do ponto de vista formal, haja vista a violação aos arts. 22, I, e 48, da CRFB/1988, segundo os quais compete ao Congresso Nacional dispor, mediante lei, acerca das matérias inseridas no âmbito da competência da União, a exemplo de Direito Processual e Eleitoral, visto que:

a) ao dispor sobre a necessidade de prévia notificação e citação dos órgãos partidários inadimplentes, de autuação de processo, com posterior vista ao órgão ministerial e outras previsões assemelhadas, o TSE criou verdadeiras regas de direito processual, e não apenas de mero conteúdo procedimental;

b) embora o direito partidário goze de autonomia em relação ao direito eleitoral, como preconizam renomados doutrinadores9, entende-se que ambos os ramos jurídicos se encontram abrangidos pelo art. 22, I, da CRFB/1988.

Não se desconhece que o Supremo Tribunal Federal (STF) se pronunciou no sentido da constitucionalidade das Resoluções TSE n. 22.610/2007 e 22.733/2008, que disciplinam o processo de perda de mandato eletivo em virtude de infidelidade partidária, as quais também trazem em seu bojo normas autenticamente processuais. Contudo, não se pode perder de vista que, naquela ocasião, o STF pontuou que a validade de referidas resoluções surgiria em excepcional contexto, enquanto não houvesse disciplina legal expressa sobre o assunto, conforme se depreenda da seguinte ementa, que bem sintetiza a ideia aqui exposta:

1. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008, que disciplinam a perda do cargo eletivo e o processo de justificação da desfiliação partidária. 2. Síntese das violações constitucionais argüidas. [...]. Suposta usurpação de competência do Legislativo e do Executivo para dispor sobre matéria eleitoral (arts. 22, I, 48 e 84, IV da Constituição), em virtude de o art. 1º da Resolução disciplinar de maneira inovadora a perda do cargo eletivo. Por estabelecer normas de caráter processual, como a forma da petição inicial e das provas (art. 3º), o prazo para a resposta e as conseqüências da revelia (art. 3º, caput e par. ún.), os requisitos e direitos da defesa (art. 5º), o julgamento antecipado da lide (art. 6º), a disciplina e o ônus da prova (art. 7º, caput e par. ún., art. 8º), a Resolução também teria violado a reserva prevista nos arts. 22, I, 48 e 84, IV da Constituição. [...] Por fim, dizem os requerentes que o ato impugnado invadiu competência legislativa, violando o princípio da separação dos poderes (arts. 2º, 60, § 4º, III da Constituição). 3. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos Mandados de Segurança 26.602, 26.603 e 26.604 reconheceu a existência do dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária. Ressalva do entendimento então manifestado pelo ministro-relator. 4. Não faria sentido a Corte reconhecer a existência de um direito constitucional sem prever um instrumento para assegurá-lo. 5. As resoluções impugnadas surgem em contexto excepcional e transitório, tão-somente como mecanismos para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar. 6. São constitucionais as Resoluções 22.610/2007 e 22.733/2008 do Tribunal Superior Eleitoral. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, mas julgada improcedente.10

Diferentemente do caso acima exposto, no qual havia verdadeira lacuna legislativa e regulamentar sobre o procedimento de perda do mandato eletivo por infidelidade partidária, em matéria de Prestação de Contas já existe regramento bastante claro na legislação de regência, e também havia resolução igualmente clara quanto ao iter procedimental a ser seguido, de forma que não se vislumbra, aqui, qualquer contexto excepcional e transitório como aquele que justificou o reconhecimento da constitucionalidade das mencionadas resoluções do TSE.

Verifica-se, ainda, inconstitucionalidade material por violação ao art. 84, IV, da CRFB/1988, visto que, não obstante o poder regulamentar conferido ao TSE, a este não é dado inovar na ordem jurídica mediante a edição de regulamentos autônomos, mormente quando contrariarem preceitos constitucionais e legais preexistentes, como já reconheceu o STF em diversas oportunidades, inclusive recentemente no tocante à Resolução TSE n. 23.389/201311  (alterava a distribuição de cadeiras por Estado-membro a parlamentares na Câmara dos Deputados para o pleito de 2014) e ao art. 8º da Resolução TSE 23.396/201312  (suprimia o poder do Ministério Público para, por autoridade própria, de requisitar a instauração de inquéritos policiais eleitorais).

Cite-se, a título exemplificativo, excerto da ementa de julgados do STF que consideraram inconstitucional a primeira das resoluções acima mencionada:

[...] 2. Embora apto a produzir atos abstratos com força de lei, o poder de editar normas do Tribunal Superior Eleitoral, no âmbito administrativo, tem os seus limites materiais condicionados aos parâmetros do legislador complementar, no caso a Lei Complementar n. 78/1993 e, de modo mais amplo, o Código Eleitoral, recepcionado como lei complementar. Poder normativo não é poder legislativo. A norma de caráter regulatório preserva a sua legitimidade quando cumpre o conteúdo material da legislação eleitoral. Pode conter regras novas, desde que preservada a ordem vigente de direitos e obrigações, limite do agir administrativo. Regras novas, e não direito novo. [...].13

Mutatis mutandis, entende-se que, se essa posição foi tomada pelo STF em discussão a envolver o poder regulamentar do TSE em matéria administrativa, com muito maior razão também deve ser aplicada em matéria típica de direito processual, reservada ao domínio legislativo do Congresso Nacional (CRFB/1988, arts. 22, I, 48 e 84, IV), sob pena de exorbitância do regulamento, como se verifica em relação ao art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014.

Ainda, consoante já ressaltado, o procedimento, até então simples, tornou-se extremamente burocrático, complexo e caro – sim, porque os custos certamente serão multiplicados, em todos os aspectos (humanos, materiais etc) –, por inverter a lógica da Resolução TSE n. 21.841/2004 e da própria lei, ao trazer à Justiça Eleitoral o ônus de “correr atrás” dos órgãos partidários omissos para que cumpram uma obrigação ex lege e com prazo certo já previsto em lei, o que, em última análise, menoscaba e ultraja a relevância constitucional da própria Justiça Eleitoral e do instituto da Prestação de Contas, além de reduzir qualitativamente a importância e a força dos comandos legais atinentes à matéria.

Argumente-se, também, que o novel procedimento atenta contra os mais comezinhos princípios da administração pública, notadamente o da legalidade e o da eficiência (CRFB/1988, art. 37, caput), na medida em que viola a lei e compromete/atrasa o desenvolvimento de outras atividades relevantes pela Justiça Eleitoral, além de comprometer, ainda, a plena eficácia dos princípios da economia e da celeridade processuais (CRFB/1988, art. 5º, LXXVIII).

Não bastasse, qualquer discurso voltado à sustentabilidade ambiental, com fulcro no art. 225, caput, da CRFB/1988 – tão propugnado pelo Conselho Nacional de Justiça e por diversas Cortes Eleitorais no país – representa mera demagogia nesse contexto, haja vista a necessidade de autuação (física, ainda) de 15 (quinze) a 30 (trinta) processos, em média, por município, um para cada órgão partidário municipal, como parece ser o espírito desse novo procedimento. Trata-se de aspecto prático muito relevante, principalmente num país com mais de 5.000 (cinco mil) municípios (com realidades, aliás, muito diferentes), o que, infelizmente, parece também ter sido olvidado pela resolução impugnada.

Por fim, surpreende a falta de sensibilidade dessa novel resolução em aplicar esse complexo e burocrático procedimento, contrário a tudo, aos Órgãos Partidários Municipais, cuja inadimplência em relação à Prestação de Contas mostra-se verdadeira constante e que pouco se importam em regularizar sua situação partidária, tendo em vista a inexistência de efetiva sanção, de modo a sobrecarregar inutilmente a boa marcha dos serviços cartoriais.

Portanto, o novo procedimento trazido pelo art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014 incide em manifesta inconstitucionalidade, por ofender a competência legislativa privativa da União, por meio do Congresso Nacional; exorbitar, o TSE, de seu poder regulamentar; atentar contra os princípios da administração pública, contra a celeridade e economia processuais; vilipendiar o compromisso de sustentabilidade ambiental; e, por fim, devido à ausência de razoabilidade e proporcionalidade, notadamente em face dos Órgãos Partidários Municipais, considerada a disciplina constitucional e legal acerca da matéria.

3 DA SANÇÃO DE SUSPENSÃO DO REGISTRO DO ÓRGÃO PARTIDÁRIO

Na realidade, parece que toda essa burocracia procedimental trazida pela Resolução TSE n. 23.432/2014 no tocante à sistemática de contas não prestadas tenha sido uma forma de justificar a criação, também pela mesma resolução, de uma nova penalidade, notadamente em relação aos órgãos regionais, municipais ou zonais dos partidos políticos.

É o que se infere da previsão constante do art. 47, § 2º, daquela resolução:

Art. 47. A falta de prestação de contas implica a proibição de recebimento de recursos oriundos do partidário, enquanto não for regularizada a situação do partido político.
[...]
§ 2º Julgadas não prestadas as contas dos órgãos regionais, municipais ou zonais, serão eles e os seus responsáveis considerados, para todos os efeitos, inadimplentes perante a Justiça Eleitoral e o registro ou anotação dos seus órgãos de direção e ficará suspenso até a regularização da sua situação.
[...]

Conforme já asseverado, atualmente a única sanção concreta prevista em lei decorrente da não Prestação de Contas, além da suspensão de cotas do fundo partidário ao órgão inadimplente, consiste no cancelamento do registro civil e do estatuto partidário, o que ocorre, porém, apenas em relação aos órgãos partidários de âmbito nacional (Lei n. 9.096/1995, art. 28, III c/c § 6º).

Contudo, em caráter verdadeiramente inovador, o art. 47, § 2º, acima transcrito, também opera efeito similar em relação aos órgãos partidários das demais esferas que não a nacional, com a cominação de suspensão do registro ou anotação dos seus órgãos de direção na circunscrição até a regularização da inadimplência.

Assim, de modo semelhante aos órgãos nacionais, os órgãos regionais, municipais e zonais inadimplentes passariam a não mais existir, ao menos temporariamente, porém com possibilidade de regularização mediante a protocolização de pedido dessa natureza, a seguir outro procedimento específico, previsto no art. 61 da Resolução TSE n. 23.432/2014.

Em suma, esse pedido – que a resolução denomina de “regularização das contas não prestadas” – assemelha-se a uma Prestação de Contas tardia, com algumas peculiaridades, como a possibilidade de apresentação pelo órgão partidário hierarquicamente superior e o recebimento no efeito meramente devolutivo (Resolução TSE n. 23.432/2014, art. 61, § 1º, I e IV). Além disso, a situação de inadimplência somente será levantada após o efetivo recolhimento dos valores eventualmente devidos e o cumprimento das sanções relativas à suspensão de cotas do Fundo Partidário (Resolução TSE n. 23.432/2014, art. 61, § 4º).

Nesse ínterim, afigura-se evidente que a intenção da Resolução TSE n. 23.432/2014 foi criar todo um procedimento burocrático, complexo e caro, previsto no art. 30, a fim de legitimar essa nova sanção, sem qualquer respaldo jurídico, e que por isso também se afigura manifestamente inconstitucional.

Entende-se que, assim como o novo procedimento previsto no referido art. 30, a nova sanção criada pelo art. 47, § 2º, daquela resolução traz manifesta inconstitucionalidade formal e material, por invadir a competência legislativa privativa da União, a cargo do Congresso Nacional, e por exorbitar manifestamente do poder regulamentar conferido ao TSE (CRFB/1988, art. 22, I, 48, 84, IV), na medida em que cria penalidade sem previsão legal.

Nem se argumente que a intenção foi dar efetividade à lei e ao instituto de Prestação de Contas, em analogia à previsão de cancelamento do registro e do estatuto partidário do órgão nacional (Lei n. 9.096/1995, art. 28, III c/c § 6º), visto que a criação de novas sanções há de observar o princípio da estrita legalidade, notadamente por se tratar de matéria de direito sancionador14, no qual devem incidir as mesmas garantias do Direito Penal. Os fins, aliás, não justificam os meios, assim como não cabe analogia para aplicar novas punições não previstas em lei anterior.

Ressalte-se, ainda, que a regra do art. 47, § 2º, da Resolução TSE n. 23.432/2014 deve, no mínimo, ter sua eficácia modulada temporalmente, visto que “as disposições previstas nesta Resolução não atingirão o mérito dos processos de Prestação de Contas relativos aos exercícios anteriores ao de 2015” (art. 67, caput). Em se tratando de nova penalidade, que, salvo melhor juízo, constitui inegável alteração de mérito, ao menos a modulação acima referida deve se impor, se não for reconhecida sua total inconstitucionalidade.

Há de se ponderar, por fim, que essa “nova penalidade” pode ser facilmente driblada, o que evidencia sobremaneira a fragilidade de sua previsão, uma vez que essa sanção se aplica apenas em sede de contas não prestadas, mas não em caso de desaprovação de contas, visto que a própria resolução reconhece sua limitação, no art. 48, ao não estender o mesmo efeito do art. 47, § 2º, às contas desaprovadas.

Assim, ao menos em relação à grande maioria dos Órgãos Partidários Municipais, que não recebem recursos do Fundo Partidário, basta, por exemplo, que apresentem as respectivas contas partidárias zeradas ou de qualquer outro jeito, como geralmente o fazem, desde que respeitados os requisitos mínimos de admissibilidade impostos pela novel resolução. Nesse caso, a “penalidade” continuará a ser a mesma: desaprovação das respectivas contas e suspensão do repasse de novas cotas do Fundo Partidário, o que não surtirá qualquer efeito prático relevante.

Portanto, verifica-se que a previsão do art. 47, § 2º, da Resolução TSE n. 23.432/2014 afigura-se, num primeiro momento, inconstitucional; num segundo momento, inaplicável aos processos referentes a exercícios anteriores ao de 2015; e, por fim, ao menos em relação à esmagadora maioria dos Órgãos Partidários Municipais, sem qualquer efetividade prática.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema prestação de contas partidárias vem sendo objeto de inúmeras discussões em diversos âmbitos, notadamente na jurisprudência dos tribunais eleitorais, no Congresso Nacional – e uma prova disso é a edição da Lei n. 12.034/2009, que conferiu novas facetas ao regime sancionatório decorrente da desaprovação de contas – e no próprio TSE, por meio dos atos regulamentares expedidos pela Corte, como se verifica na recente Resolução TSE n. 23.432/2014.

Não se desconhece, ainda, que o STF tem proclamado, inclusive em recentes julgamentos, a inviabilidade de o TSE, no exercício legítimo de seu poder regulamentar, criar “direito novo”, mas apenas regras novas, sob pena de afronta à competência legislativa privativa do Congresso Nacional em searas reservadas ao domínio legislativo, como ocorre em matéria processual e eleitoral, e de exorbitância do poder regulamentar conferido ao TSE.

Especificamente no tocante à ausência de prestação de contas no prazo legal, entende-se que a antiga sistemática prevista na Resolução TSE n. 21.841/2004 cumpria devidamente seu papel regulamentar, sem invadir o campo da reserva legal, na medida em que propugnava a aplicação da Lei n. 9.096/1995 tal como previsto em seu texto, no sentido de se tratar, o dever de prestar contas, de obrigação ex lege e com termo final precisamente delineado em lei, de modo a atribuir aos órgãos partidários o ônus de virem até a Justiça Eleitoral para tanto.

Contudo, esse procedimento, até então simples, tornou-se extremamente burocrático e complexo, por inverter a lógica da Resolução TSE n. 21.841/2004 e da própria lei, visto que o novo texto trouxe para a Justiça Eleitoral o ônus de “correr atrás” dos órgãos partidários omissos – como se fosse “babá de partido”, na expressão jocosamente cunhada por alguns colegas – para que cumpram uma obrigação ex lege e com prazo certo já previsto em lei. Entende-se, ainda, que essa nova sistemática, trazida pelo art. 30 da Resolução TSE n. 23.432/2014, incide em manifesta inconstitucionalidade, por ofender a competência legislativa privativa da União, por meio do Congresso Nacional; exorbitar, o TSE, de seu poder regulamentar; atentar contra os princípios da administração pública, contra a celeridade e economia processuais; vilipendiar o compromisso de sustentabilidade ambiental; e, por fim, devido à ausência de razoabilidade e proporcionalidade, notadamente em face dos Órgãos Partidários Municipais, considerada a disciplina constitucional e legal acerca da matéria.

Nesse ínterim, também merece críticas a previsão do art. 47, § 2º, da Resolução TSE n. 23.432/2014, por se afigurar, num primeiro momento, inconstitucional, pelos mesmos fundamentos acima expostos; num segundo momento, inaplicável aos processos referentes a exercícios anteriores ao de 2015, por implicar alteração de mérito, nos termos do art. 67, caput, daquela resolução; e, por fim, ao menos em relação à esmagadora maioria dos Órgãos Partidários Municipais, sem qualquer efetividade prática, tendo em vista a fácil possibilidade de burla à sanção criada, visto que esta só se aplica às contas não apresentadas, e não na hipótese de desaprovação de contas.

Portanto, confirmam-se todas as hipóteses inicialmente levantadas – explicitadas na introdução – e espera-se que o colendo TSE, com toda a humildade, reveja seu posicionamento e revogue os dispositivos atacados, de modo a retornar à sistemática anterior relativamente a contas não prestadas; se não, resta aguardar que os legitimados do art. 103 da CRFB/1988 promovam o pertinente questionamento judicial da matéria em sede de controle concentrado perante o STF.

REFERÊNCIAS


BARRETO, Lauro. Comentários à lei orgânica dos partidos políticos (Lei n. 9.096/95). Bauru – SP: Edipro, 1997.

CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 7. ed. Belo Horizonte: DelRey, 2014.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

LULA, Carlos Eduardo de Oliveira. Direito Eleitoral. 4. ed. Leme – SP: Imperium, 2014.

RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

SANTANO, Ana Claudia. O financiamento da política no Brasil – ensaio preliminar e novos desafios. In: DANTAS, Ivo; SALGADO, Eneida Desiree (coord.). Partidos políticos e seu regime jurídico. Curitiba: Juruá, 2013.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008.

NOTAS

1 RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 12.

2 GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 99.

3 BARRETO, Lauro. Comentários à lei orgânica dos partidos políticos (Lei n. 9.096/95). Bauru – SP: Edipro, 1997, p. 63 e 65.

4 SANTANO, Ana Claudia. O financiamento da política no Brasil – ensaio preliminar e novos desafios. In: DANTAS, Ivo; SALGADO, Eneida Desiree (coord.). Partidos políticos e seu regime jurídico. Curitiba: Juruá, 2013, p. 110.

5 Eventual responsabilização em outras searas se daria, por exemplo, em caso de falsificação de um balanço contábil, que poderia configurar o crime de falsidade ideológica (CP, art. 297); ou, em caso de declaração de uma verba que o partido não recebeu, poder-se-ia cogitar de responsabilizar civilmente o tesoureiro do partido perante o respectivo órgão pelo valor que afirma esste ter recebido. Trata-se apenas de conjecturas que, na prática, dificilmente ocorrem ou, ao menos, não têm ensejado uma concreta responsabilização na grande maioria dos casos.

6 STJ. 4ª Turma, AgRg no AREsp 421.538/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. em 24.6.2014. No mesmo sentido, dentre tantos outros: STJ, 4ª Turma, AgRg no AREsp 172.693/MT, Rel. Ministro Marco Buzzi, j. em 6.11.2014.

7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 425-426.

8 LULA, Carlos Eduardo de Oliveira. Direito Eleitoral. 4. ed. Leme – SP: Imperium, 2014, p. 136, grifos do original.

9 CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral, p. 17.

10 STF, Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.999/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 12.11.2008, grifos ausentes no original.

11 STF, Tribunal Pleno. Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 4.947/DF, 5.020/DF e 5.028/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Rel. Desig. Min. Rosa Weber, j. 1º.7.2014. STF, Tribunal Pleno, Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 33-DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18.6.2014.

12 STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.104/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 21.5.2014.

13 STF, Tribunal Pleno. Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 5.020/DF e 5.028/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, Rel. Desig. Min. Rosa Weber, j. 1º.7.2014.

14 Mutatis mutandis, confiram-se os seguintes precedentes do STJ, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (1ª Turma), que representam jurisprudência pacífica daquela Corte: REsp 1.259.350/MS, j. em 22.10.2013; e REsp 1.282.445/DF, j. em 24.4.2014.

Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE/PR). Chefe de Cartório da 134ª Zona Eleitoral (Palmital/PR) – Portaria 290/2014. Ex-Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, tendo exercido suas funções na 2ª Câmara de Direito Comercial e na 1ª Câmara de Direito Público. Especialista em "Jurisdição Federal" pela Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (ESMAFESC) e em "Direito Tributário" pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), instituição de ensino na qual também obteve o grau de bacharel em Direito.

 

 

 

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